Um texto de Ellen Gomes, autora da página Filhas do Corvo!

The Morrigan (Gift of Peace to a War Goddess) por Portia St. Luke

 

A Morrigan, ou as Morrígna (As Grandes Rainhas), são tanto uma como também três figuras representadas como uma tríade divinizada dentro da cultura e do panteão gaélico irlandês. Muito se especula se seu nome seria a denominação de uma deidade só (se referindo apenas a Morrigan), ou se seria ele um título carregado por três deusas distintas, sendo elas Morrigan, Badb e Macha. E bem, de certa forma, ambas as alternativas estariam corretas. Os relatos que temos hoje em dia da sua presença histórica derivam dos mitos irlandeses, que são divididos em ciclos. E entender esses ciclos é essencial para compreender quem elas são.

Na introdução da dissertação The Morrigan and her Germano-Celtic Counterparts de Angelique Gulermovich Epsteisn, folclorista céltica, temos a seguinte citação: ”A Morrigan é a deusa da guerra dos irlandeses pagãos. Ela é uma deusa temível, personificando a guerra da maneira que os antigos irlandeses a viam: barulhenta, caótica, gloriosa, sangrenta e heroica. Ela é selvagem e enganosa, sedenta de sangue, deleitando-se com o sangue da batalha. Ela vem como um corvo de carniça ou uma bruxa, anunciando ou causando morte violenta. No entanto, ela não é um mero demônio. Ela luta por sua raça, os Tuatha Dé Danann, contra os invasores Fomorianos. Ela tem um relacionamento estranho com o grande guerreiro da Irlanda, Cú Chulainn: lutando com ele, ela o obriga a alcançar sua maior glória. Sob os nomes – Namain, Macha, Fea, Badb e A Lavadeira do Vau – ela mostra aspectos da maternidade, feitiçaria, profecia e ensino.”

Então, vamos começar do começo?

 

Origens

 

No Ciclo Mitológico, onde temos as histórias dos deuses gaélicos irlandeses, os Tuatha Dé Danann aparecem primeiro no Lebor Gabála Érenn (o “Livro das Invasões”), como o quinto grupo de habitantes da Irlanda. Eles teriam vindo de quatro cidades do norte: Falias, Gorias, Murias e Finias. E, por volta do dia primeiro de Maio, teriam desembarcado na Irlanda, conduzidos pelo seu rei Nuada, travando a Primeira Batalha de Magh Tuiredh (Moytura), na costa oeste, onde derrotaram os nativos Fir Bolg. Nesta aparição inicial encontramos a presença de Morrigan, junto as suas irmãs Badb e Macha.

Você pode encontrar a seguinte citação a elas na página 17 do livro As Crônicas de Inis Fál de Leonni Moura: ”Sua esposa e rainha era Macha, irmã de Morrigan e Badb, formando juntas o trio das Morrígna, as senhoras da guerra. Sanguinárias e implacáveis, as irmãs também dominavam a feitiçaria e as artes proféticas.” E na página 29, do capítulo 3, onde é narrada a Primeira Batalha de Moytura: ”Sendo assim, as irmãs feiticeiras Badb, Macha e Morrígan foram até Druim Cain, onde os Fir Bolg estavam, e subiram no Monte dos Reféns. Com a sua feitiçaria, elas chamaram nuvens que choviam sangue, neblina e fogo. O sangue jorrava sobre as cabeças dos guerreiros ininterruptamente e durante 3 dias e 3 noites, os Fir Bolg não tiveram paz ou descanso.”

Elas são descritas, nesta primeira aparição mitológica, como as feiticeiras dos Tuatha Dé Danann. Indo a frente deles, junto com seus melhores guerreiros e líderes, no campo de batalha contra os Fir Bolg. Morrigan é, nesta passagem, uma das três irmãs que formam o trio das Morrígna, deusas da guerra e da feitiçaria irlandesas. Quando falamos Morrígna então nos referimos ao título do trio divino, e quando falamos apenas Morrigan nos referimos a uma das três Morrígna.

 

Divergências da tríade

 

Na conclusão da dissertação The Morrigan and her Germano-Celtic Counterparts de Angelique Gulermovich Epsteisn vemos que: ”Embora as aparições de Morrígan no Ciclo Mitológico não tenham sido esgotadas (ainda há vários textos a serem explorados), os textos que vimos até agora apresentam uma imagem dela bem de acordo com as práticas marciais celtas. Nos glossários, além dos contos do Ciclo Mitológico, a Morrígan aparece como um único ser ou uma classe de seres, cujos membros têm vários nomes aparentemente intercambiáveis.”

Existem algumas referências mitológicas que vão falar que Anann ou Anu seria o verdadeiro nome de Morrigan, o trio sendo formado então por Anann, Badb e Macha. Mas essas versões são historicamente bastante questionáveis. Muitos pontos dos ciclos irlandeses são debatidos por historiadores até hoje, não se tendo uma decisão final sobre eles. E muitos desses pontos que ainda estão em aberto são relacionados as Morrígna. Como, por exemplo, as referências que incluem também Nemain e Fea como partes da trindade. É comum que, ao pesquisarmos sobre as Morrígna e seus mitos, encontremos essas confusões. O que temos de mais seguro no entanto, continua sendo a narrativa do Ciclo Mitológico onde o trio é citado como composto por Morrigan, Badb e Macha.

 

Qual é a tradução do nome Morrigan?

 

Sendo um assunto também bastante especulativo, existem muitos estudiosos da mitologia irlandesa e das línguas gaélicas que vão traduzir Morrigan como A Grande Rainha, e outros que traduzirão como Rainha Fantasma. Rigan significa rainha, ao passo que Mór, com acento, significa grande, e Mor, sem acento, seria algo como fantasma, ou assombração. Sendo apenas um acento o que separa um sentido do outro, ambos podem estar corretos. A diferenciação seria mesmo uma questão de pronuncia. Então quando você chama por Mórrigan, com o acento marcado na letra o, você está chamando A Grande Rainha, ao passo que se você chamar por Morrigan, sem a acentuação no primeiro o, você estará se referindo a ela como A Rainha Fantasma, ou a Rainha das Assombrações. Quando nos referimos as Morrígna, por uma questão de pronunciação, estamos nos referindo as Grandes Rainhas.

Como já deu para perceber, na complexidade dos mitos irlandeses, falar das Morrígna nunca é uma tarefa simples. Existe quem irá dizer que Morrigan é uma divindade só, e que Badb e Macha seriam faces diferentes desta única divindade, e existe quem irá dizer que são realmente figuras distintas, que vivem de forma separada, sendo irmãs, como citado nesta primeira aparição delas no Ciclo Mitológico Irlandês. Encontramos muito mais respaldo mítico na segunda opção, pois apesar das três figuras terem muito em comum, como divindades da guerra, da feitiçaria e da profecia, cada uma delas também possui em si seus mitos individuais e suas particularidades.

Arquivo Pessoal/ Filhas do Corvo

 

Principais passagens de Morrigan

 

· Ciclo Mitológico Irlandês

É aqui que teremos a Primeira e a Segunda Batalha de Moytura. A Primeira, como já foi citado, foi contra os Fir Bolg. Na Segunda, entre os Tuatha Dé Danann e os Fomorianos, teremos novamente uma participação ativa de Morrigan. É nela que encontramos a passagem onde Morrigan se encontra com Dagda e juntos, após se deitarem um com o outro, tramam estratégias de batalha. Também a teremos incentivando Lugh a luta. E em campo, a teremos recitando encantamentos mágicos, assim como ela fez na Primeira Batalha, garantindo novamente a vitória do seu povo. Após o triunfo, a temos junto a Badb, recitando ambas poemas tanto de paz e prosperidade quanto profecias de tristeza e violência.

 

· O Ciclo de Ulster

Se passando no início da era cristã, nesse ciclo de oitenta mitos teremos basicamente as histórias desenroladas entre as províncias de Ulster e de Connacht, com as proezas de Conchobar mac Nessa, rei de Ulster, e as aventuras do famoso herói Cúchulainn, filho de Lug. Aqui são famosos os Táin Bó, ou seja, os roubos de gado. E Morrigan se faz presente nos contos The Wooing of Emer, Eehtra Nerai, Táin Bó Regamna, Táin Bó Cúailnge e no The Death of Cú Chulainn.

 

· O Ciclo Feniano

Focando suas passagens na vida e morte de Fionn mac Cumhaill, um caçador-guerreiro mítico, é aqui onde encontramos as menções a Morrigan como a figura da Lavadeira do Vau, lavando nas margens dos rios as roupas daqueles que irão morrer no campo de batalha. O relato é dado pelo canto de um guerreiro morto. E nele temos a seguinte descrição: ”Há em torno de nós aqui e ali muitas pilhagens cuja sorte é famosa, horríveis são as enormes entranhas que a Morrigan lava. Ela veio até nós da beira de um pilar, é ela quem nos incitou; muitas são as pilhagens que ela lava, horrível e odiosa é a risada que ela dá.”

 

As shapeshifter

Em seus mitos, tanto Morrigan, quanto também Badb e Macha, são descritas como shapeshifter, ou seja, divindades meta morfas. Elas se transmutam, se transformam, naquilo que querem ser. E quando querem ser.

Um dos grandes exemplos desta habilidade está descrita nos mitos do Ciclo de Ulster. Mais precisamente no Táin Bó Regamna (O Roubo do Gado de Regamna), onde temos o primeiro encontro entre Morrigan e o herói Cúchulainn. Acordando abruptamente por causa de um barulho estranho, como se fosse um choro ou um lamento, Cúchulainn se levanta e vai ver de onde viria o som que o despertara. É nisto que ele se depara com uma mulher descrita tanto como ruiva como também estando completamente vestida de vermelho, tanto em seu vestido como no manto que a cobria. Em cima de uma biga conduzida por um cavalo de uma perna só, ao lado de um homem também trajado de vermelho portando uma forquilha de aveleira, esta mulher conduzia uma das vacas do gado de Ulster. Muito enfurecido, pois todo gado de Ulster devia estar sob sua proteção, Cúchulainn pergunta a mulher para onde que ela estaria indo com aquele animal. Respondendo basicamente que não era da conta dele, a mulher então começa ali uma discussão com Cúchulainn, onde eles batem boca por algum tempo.

Em um determinado momento, a mulher finalmente revela que teria ganhado a vaca como recompensa a um poema que ela compusera. Intrigado, Cúchulainn pede para que ela declame o tal poema, no que ela o faz, falando do destino e da futura morte do próprio Cúchulainn. Indignado

com o que ouviu, ele volta a discutir fervorosamente com ela, no que ela se transforma num corvo, pousando numa árvore próxima e continuando a argumentação com ele na sua forma animal. Ao final, ela diz que aparecerá novamente para ele sob a forma de outros três animais: uma enguia, uma loba e uma novilha branca de orelhas vermelhas. No que ele, continuando a enfrentá-la, diz que em todas essas vezes lhe quebrará os ossos. E que ela jamais poderá ser curada desses ferimentos enquanto ele não a abençoasse. No final da discussão, Cúchulainn volta a sua casa e a mulher ao Shid Cruachan, uma passagem ao Outro Mundo celta, com sua vaca.

Alguns autores e pesquisadores tratarão esta mulher como Morrigan, enquanto outros defenderão que, pela transformação em corvo, ela seria Badb. Afinal. o próprio nome de Badb significaria corvo. Sendo uma ou outra, vemos a continuação dessa história no Táin Bó Cúailnge, onde Morrigan surge como uma jovem encantadora, filha de um rei, propondo Cúchulainn em casamento. Recusando a proposta dela, dizendo que tinha outras prioridades maiores do que se casar, ele mais uma vez discute com ela, onde novamente ela promete que voltaria a aparecer para ele como os três animais anteriormente citados (a enguia, a loba e a novilha). Mais para frente, em uma das batalhas de Cúchulainn, a temos cumprindo sua promessa, surgindo como uma enguia mordendo seu calcanhar, onde ele pisa nela até quebrar seus ossos, surgindo como uma loba o atacando, onde novamente ele a fere em batalha, e como a novilha, onde ele novamente a ataca.

Ao final dessas batalhas, quando Cúchulainn se encontra exausto de lutar tanto com Morrigan quanto com seus oponentes, a deusa surge novamente, desta vez como uma velha senhora, ordenhando uma vaca de três tetas. Sem a reconhecer, ele pede a ela um pouco de leite, para tentar restaurar uma parcela da sua força gasta. Gentilmente ela lhe oferece o leite, e a cada um dos três goles que ele dá ele a abençoa, cada uma daquelas bençãos curando os ferimentos que ele lhe causou em cada uma das suas formas animais, sem que ele percebesse o que fazia.

Estes são apenas alguns dos seus muitos mitos de transmutação, famosos por estarem inclusos nas passagens de sua relação turbulenta com Cúchulainn. Estudando a mitologia irlandesa e seus ciclos podemos encontrar diversos outros casos, aparições, e metamorfoses suas. É importante aqui destacar que, durante todas suas citações, em momento algum a vemos representando o conceito da Deusa Tríplice, como ele é incorporado atualmente em muitas vertentes religiosas do neo paganismo. Em sua natureza de shapeshifter a temos desempenhando diversos papéis, muitos ao mesmo tempo, e de formas bastante controversas. E reduzi-las a este arquétipo seria empobrecer sua complexidade para as encaixar num perfil que mitologicamente elas nunca tiveram a necessidade de ocupar.

 

Observações e indicações

 

É muito difundida na atualidade a ideia de que Morrigan, e as Morrígna como um todo, seriam as deusas celtas do submundo. Apesar de sim, ela ser ligada a morte em alguns dos seus aspectos, devemos nos lembrar que, dentro da mitologia irlandesa, não existe a ideia de submundo da mesma forma com a qual a trabalhamos atualmente. Nela, vamos encontrar apenas a concepção do ”Outro Mundo”, que seriam camadas do plano astral, espiritual, habitadas tanto pelos espíritos daqueles que já morreram quanto também pelas divindades e pelos shid. Outra atribuição de pouco sentido é colocar Morrigan como uma deusa do sexo por causa da citação onde ela se deita com o deus Dagda antes da Segunda Batalha de Moytura. Muitas divindades irlandesas se relacionam umas com as outras, inclusive sexualmente, sem que para isso elas precisem ser regentes da sexualidade em si. É bom, para todos os que procuram sobre ela nos dias de hoje, pesquisar sobre as dinâmicas dos

mitos irlandeses, suas concepções e visões de mundo, antes de reproduzirem alguns lugares comuns que, apesar de serem fáceis num primeiro momento, acabam não tendo em si, no final, nenhuma base mitológica ou cultural.

Para quem quiser ler mais sobre as Morrígna, aqui está o link para para leitura do Táin Bó Regamna em português: O Roubo do Gado de Regamna e os links para compra dos dois mais completos livros sobre elas, o livro de Morpheus Ravenna: The Book of the Great Queen e o livro de Morgan Daimler: The Morrigan: Meeting the Great Queens.

 

Que as bençãos e a força das Morrígna estejam com todos nós. Heya!

 

Autor: Ellen Gomes 
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