Artigo escrito pela belíssima Jéssica Bento, autora do Insta @a.mediadora

Imagem de Ishtar / @a.mediadora / Arquivo pessoal

 

Lendo o livro Mulheres que correm com os lobos me deparei com a história das Deusas sujas, a história conta o mito de Perséfone de uma forma que eu nunca havia conhecido:

“Deméter, a mãe-terra, tinha uma linda filha chamada Perséfone, que estava um dia brincando ao ar livre. Perséfone encontrou por acaso uma flor de rara beleza e estendeu os dedos para tocar seu lindo cálice. De repente, a terra começou a tremer e uma gigantesca fenda se abriu em ziguezague. Das profundezas da terra chegou Hades, o Deus dos Infernos. Ele chegou alto e majestoso numa biga negra puxada por quatro cavalos da cor de fantasmas.

Hades apanhou Perséfone, levando-a para sua biga, em meio a uma confusão de véus e sandálias. Ele guiou, então seus cavalos cada vez mais para dentro da terra. Os gritos de Perséfone foram ficando cada vez mais fracos à medida que a fenda foi se fechando como se nada tivesse acontecido. Por toda a terra, abateu-se um silêncio e o perfume de flores esmagadas.

E a voz da donzela a gritar ecoou nas pedras das montanhas e borbulhou num lamento vindo do fundo do mar. Deméter ouviu os gritos das pedras. Ela ouviu, também, o choro das águas. Arrancou, então, a grinalda dos seus cabelos imortais, deixou cair de cada ombro seus véus escuros e saiu a sobrevoar a terra como uma ave enorme, procurando, chamando por sua filha.

Naquela noite, uma velha à frente de uma gruta comentou com suas irmãs que havia ouvido três gritos naquele dia um, o de uma voz jovem que gritava de pavor; um outro que implorava ajuda; e um terceiro, o de uma mãe que chorava.

Não se via Perséfone em parte alguma. E assim começou a procura longa e enlouquecida de Deméter por sua filha querida. Deméter esbravejava, chorava, gritava, fazia perguntas, procurava debaixo, dentro e em cima de todos os acidentes geográficos, implorava por misericórdia, implorava pela morte, mas não conseguia encontrar sua filha amada.

Assim, ela, que havia gerado o crescimento perpétuo tudo, amaldiçoou todos os campos férteis do mundo, gritando na sua dor.

— Morram! Morram! Morram!

Em decorrência da maldição de Deméter, nenhuma criança poderia nascer, nenhum trigo poderia crescer para se fazer pão, nenhuma flor para as festas, nenhum ramo para os mortos. Tudo ficou murcho e esgotado na terra crestada e nos seios secos.

A própria Deméter não mais se banhava. Seus mantos estavam encharcados de lama; seus cabelos pendiam em cachos imundos. Muito embora a dor no seu coração fosse tremenda, ela não se entregava. Depois de muita investigação, de muitos pedidos e de muitos incidentes, tudo levando a nada, ela afinal perdeu as forças ao lado de um poço numa aldeia onde não era conhecida. E quando recostou seu corpo dolorido na pedra fresca do poço, chegou por ali uma mulher, ou melhor, uma espécie de mulher. E essa mulher chegou dançando até Deméter, balançando os quadris de um jeito que sugeria a relação sexual, e balançando os seios nessa sua pequena dança. E, quando Deméter a viu, não pôde deixar de sorrir um pouco.

A fêmea que dançava era realmente mágica, pois não tinha nenhum tipo de cabeça, seus mamilos eram seus olhos e sua vulva era sua boca. Foi com essa boquinha que ela começou a regalar Deméter com algumas piadas picantes e engraçadas. Deméter começou a sorrir, depois deu um risinho abafado e em seguida uma boa gargalhada. Juntas, as duas mulheres riram, a pequena Deusa do ventre, Baubo, e a poderosa Deusa mãe da terra, Deméter.

E foi exatamente esse riso que tirou Deméter da sua depressão e lhe deu energia para prosseguir na sua busca pela filha, que acabou em sucesso, com a ajuda de Baubo, da velha Hécate, e do sol Hélios. Restituíram Perséfone à sua mãe. O mundo, a terra e o ventre das mulheres voltaram a vicejar.”

Há dentro de cada mulher um ser selvagem, um instinto tão antigo quanto a própria terra. Esse ser selvagem assim como um animal, possui seu próprio tempo, seus próprios ciclos e vontades. Sensível a todo estímulo que ative nossos sentidos, está na música, na dança, na satisfação do comer e beber, no prazer do sexo, no silêncio quando se precisa e no grito quando se necessita. E é esse ser o responsável pelo cio da mulher, não o cio sexual apenas mas também a chama interior, que passa por altos e baixos pois tem ciclos, assim como as Deusas, a natureza, a lua e a vida.

Esse fogo interno e sagrado que é ligado a uma consciência intensamente sensorial, inclui o sexo mas não se atém somente a isso, faz com que mesmo sem saber a mulher então seja guiada por ele. Quando uma mulher se permite ser guiada por seu lado selvagem ela se liberta de dogmas e idéias impostos por outros. Quando se permite ser ela, mesmo que esteja num poço de escuridão e tristeza, sabe que pode sair. Pois, possui dentro de si essa chama que queima e destrói tudo que venha ficar em seu caminho.

Havia em tempos antigos cultos para Deusas que eram voltadas para a sexualidade irreverente, Deusas de imenso saber, Deusas que assim como Deméter que é citada na história tinham ciência das maiores alegrias do mundo mas também das dores mais cruéis. Essas Deusas que foram vistas como más e sujas, condenadas ao esquecimento, jogadas para baixo do tapete, trazem em sua sabedoria a cura de forma diferente da qual nos ensinaram, é através da gargalhada, do orgasmo, do sexo livre, das piadas maliciosas, do prazer que elas vem nos curar.

Deusas que apesar de não serem mais cultuadas, toda mulher conhece em dado momento do seu caminho.

Quando estamos cegas, perdidas no escuro, quando o cansaço físico e mental pesa e imobiliza, quando mergulhamos em relacionamentos rasos. Elas vem, como brisa suave que traz ânimo, como um chacoalhão que desperta, como um respirar profundo que acalma, um nascer do sol que traz esperança, uma luz no fim do túnel. Elas vem nos lembrando que tudo é passageiro e efêmero, vem nos fazer perceber o quanto supervalorizamos o sofrimento, vem nos abrir os olhos e acordar do transe e fazem isso em alto e bom som com uma simples, alta e sincera gargalhada. 

SIM! Uma gargalhada daquelas que faz doer a barriga, tremer o corpo todo, daquelas que rimos com vontade, daquelas que se estivermos em público nos esforçamos para segurar. É justamente essa gargalhada que elas usam para quebrar o muro de lamentações criado por nossas autocríticas destrutivas.

E, é assim com sua sabedoria ancestral da malícia, irreverência e desimportância, que chegam com sua liberdade e sopram em nossos ouvidos a piada mais suja que for possível naquele momento, e nos fazem rir de nós mesmas e dos problemas que temos e criamos. E, ao nos abrimos ao momento, e darmos a gargalhada fatal que quebramos por um instante a rede de autocomiseração onde tudo é escuro, triste e pesaroso. E essa é a sabedoria que nos oferecem e que, se reconhecida e aceita nos leva na velocidade da luz, do extremo da tristeza, sofrimento, escuridão e falta de perspectiva ao extremo do prazer, clareza e da liberdade.

Uma curiosidade na qual me atentei é que essa é justamente a mesma forma de limpeza e proteção usada pelas pombagiras, entidades que por acaso também são mal vistas e consideradas mulheres “sujas” para os menos informados.

Em tempos remotos existia um aspecto da sexualidade feminina chamado de obsceno sagrado, não obsceno da forma como conhecemos hoje em dia mas sim na forma de uma sabedoria sexual bem-humorada, maliciosa, surpreendente e inusitada.

Obscene: do hebraico antigo, ob, significando um mago, uma feiticeira.

Assim como no mito de Perséfone, a função dessas Deusas obscenas está em espantar a melancolia, desobstruir as passagens a fim de nos fazer soltar o ar preso, nos ensinar a rir de nós e para nós. Elas aparecem quando nos tornamos prisioneiras em nós mesmas, quando passamos a nos podar a fim de caber e se encaixar ao ambiente que nos cerca, aos “bons costumes”. Vem quando nos determinamos a sorrir e acenar e a conter qualquer reação espontânea, quando nos acostumamos a fazer as coisas por obrigação e sem prazer.

Tentaram nos condicionar a esconder os sentimentos, não demonstrar, não opinar, a andar e fazer o que nos mandassem quando e onde quisessem. @a.mediadora / Arquivo pessoal

 

Elas, detentoras “obsceno sagrado” chegam com toda sua malícia, audácia e ironia e riem de nós, nos incentivando a rirmos também, falam conosco no mais profundo de nosso ser, tendo assim grande poder curativo pois nos impulsionam e incentivam a relaxar, fazendo assim com que alcancemos novamente nosso estado de naturalidade, sem travas, sem filtro, sem medo. LIVRES.

São consideradas sujas pois por anos e anos a fio as mulheres foram ensinadas que a malícia, a audácia e o prazer são pecados, a sabedoria e naturalidade são características negativas nas mulheres. Consequentemente tentaram fazer com que desaparecesse na mulher qualquer vestígio das Deusas, mas o que não sabiam era que elas jamais poderiam ser apagadas, pois onde houver mulheres lá também estarão as Deusas sujas, soprando todo tipo ironia maliciosa e nos fazendo gargalhar como loucas diante de toda e qualquer situação que queira nos derrubar. Audaciosas, irônicas, maliciosas, livres, irreverentes e felizes num ciclo sem fim.

E assim encerro com meu singelo porém sincero agradecimento às Deusas, que por diversas vezes foram minha luz no fim do túnel, ofereço a elas minha mais alta, gostosa e maliciosa gargalhada.

 

(Texto inspirado no livro “Mulheres que correm com os lobos” e “Mulheres despertas”)

 

Obrigada!

Até a próxima!

Autor: Jéssica Bento
Instagram: @a.mediadora

 

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